sábado, 11 de abril de 2009

não esqueças nunca o que em sussurros te disse...

you are welcome to elsinore




entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore

e há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar



© 1957, Mário Cesariny
in, Pena Capital
Assírio & Alvim, Lisboa, 2004









(e o nosso dever calar...)

quarta-feira, 8 de abril de 2009

... na procura...

O sol. A lua.

Desencontro eterno.

Azul de olhos semi-cerrados.
Laranja da terra onde me envolvo.

Compassos.
Passos.
Sós.

s/t

Bombeiro. Já tinha sido bombeiro. Depois, astronauta. Tentaram o polícia mas conseguiu, na sua pequenez, recusar e, em vez disso, apareceu como pirata. Até lhe tinham arranjado um papagaio verdadeiro, da loja do tio, aquela ali para os lados da avenida principal, eu cá só quero que ele faça boa figura mas tragam-mo vivo, tragam-mo vivo. Foi um sucesso nesse ano. O pobre do papagaio lá se ia assustando perante tantos dedos atrevidos que procuravam sentir as cores da sua indumentária. É claro que as bicadas resolveram situações consideradas mais críticas e o papagaio até parecia que compreendia a sua importância e a diferença que fazia naquele pequeno ombro. No ano anterior, e depois de toda aquela aventura do papagaio colorido, que acabou por chegar são e salvo à loja do tio, fora o tão desejado contentor da reciclagem. Mas o azul, que era a cor do mar que ele gostava muito. Lá ia movendo os bracitos com alguma dificuldade e facilmente era confundido com um robot não, não, mas vocês não vêem que sou o contentor da reciclagem? Pois, nós, os adultos nunca percebemos nada.

Fui dar com ele no quarto, triste, com o queixo encostado ao colchão. Havia papéis com rabiscos, desenhos indecifráveis (para nós, adultos, claro!), tinha as costas das mãos com umas letras, possivelmente um sinal para se lembrar de alguma coisa, hábito, aliás que tinha adquirido com o tio, o tal da loja do papagaio ali para os lados da avenida principal, é só virarem à direita e… Olhei para ele. Os lápis de cera que se encontravam em cima da cama tinham feito os seus estragos na t-shirt branca. Todo aquele emaranhado de cores difusas formavam estranhas figuras. Baixei-me. E nesse momento…

Toda a gente sorriu nesse ano, naquele desfile. Tinha sido, pelo menos, o traje mais original. De t-shirt branca, calças brancas, cabeleira branca, ele lá ia, no meio de todos os outros, cheio de letras rabiscadas, umas grandes, outras mais pequenas, umas coloridas, outras quase transparentes, umas direitas, aquelas muito tortas e com um sorriso de encher o mundo, muito direito na sua consciência de pequenote.

Ainda hoje a guardo. Como um tesouro. Com saudades. A minha roupa. Roupa de letras.

sábado, 4 de abril de 2009

s/t

"caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda

os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade se conjuguem
avanço sem jugo e ando longe

de caminhar sobre as águas do céu"







daniel faria
in, poesia
edições quasi

s/t